A nova vanguarda tecnológica do atraso pedagógico
Vamos adotar tecnologia de ponta apenas para continuar a fazer mais do mesmo?
Mais de 2 mil anos atrás Jesus de Nazaré ensinou:
Ninguém usa um retalho de pano novo para remendar uma roupa velha; pois o remendo novo encolhe e rasga a roupa velha, aumentando o buraco. Ninguém põe vinho novo em odres velhos. Se alguém fizer isso, os odres rebentam, o vinho se perde, e os odres ficam estragados. Pelo contrário, o vinho novo é posto em odres novos, e assim não se perdem nem os odres nem o vinho (Evangelho Segundo Mateus, cap. 9, vers. 16–17).
Pois na Educação nesse século XXI estamos diante de um dilema similar. Ou bem usamos tecnologia antiga aplicada a velhas formas de ensinar e aprender que se estabeleceram entre os séculos XVIII e XIX e ainda prevalecem por aí, ou bem aplicamos novas tecnologias a novas formas de ensinar e aprender mais alinhadas ao que os novos tempos demandam.
É claro que é perfeitamente possível adotar novas tecnologias para fazer o que há de mais retrógrado e defasado em termos educacionais. A forma como a partir dos anos 90 do século passado o PowerPoint foi adotado como substituto do quadro em aulas expositivas é o exemplo mais comum disso. Continua-se fazendo mais do mesmo. Só que com outra roupagem. Remendo de pano novo em roupa velha, que apenas piora o estado daquilo que dá todos os sinais de que já passou do tempo de ser substituído.
Outro exemplo pode ser encontrado na proliferação de “cursos” no Youtube, que são de fato séries de vídeos onde na maioria das vezes uma cabeça falante expõe conteúdos chamados de “aulas”, numa mera replicação das mais tradicionais práticas educativas, porém num meio tecnologicamente mais evoluído.
Ou, ainda, nas chamadas “lives” e “encontros” por meio de videoconferência multiponto, tão promovidos nas instituições de ensino a partir do início do período pandêmico, tentando mimetizar na tela do computador o pior da experiência vivida por milhões de estudantes em salas de aulas presenciais.
Com isto, velhos problemas são perpetuados enquanto novas tecnologias vão lhes dando suporte sem que se encontre solução.
O que a esta altura já deveríamos ter percebido é que inovação tecnológica combina com inovação pedagógica e com frequência ajuda a potencializar seus resultados. Quando porém inovação tecnológica é aplicada ao ensino tradicional, cresce o risco de amplificar suas piores consequências.
Escrevo em fins de 2024 e desde o segundo semestre de 2022 a Inteligência Artificial Gerativa (enquanto generation for traduzida por “geração”, e não por “generação”, evitarei traduzir “generative” por “generativa”) subiu ao topo da lista de assuntos em debate entre educadores. Um sinal de alerta foi ligado quando profissionais da Educação descobriram um certo ChatGPT, serviço capaz de produzir textos sobre qualquer assunto a partir de um pedido do tipo “discorra sobre tal tema em no mínimo 8 páginas dando destaque a isso e argumentando contra aquilo”. E, ignorando décadas de existência e expansão de serviços de ghost-writing voltados para a produção de textos acadêmicos por encomenda, docentes passaram a temer que seus estudantes o adotassem quando trabalhos escritos “valendo nota” fossem exigidos.
Um certo pavor foi tomando conta de professores que atuam segundo o modelo “aula expositiva + exercícios + provas ou trabalhos valendo nota” que predomina amplamente nas instituições de ensino no país. Dentro desse modelo, a chegada do ChatGPT e similares fez muita gente tremer de medo não apenas por facilitar a fraude acadêmica, mas também por permitir a automação de atividades tidas dentro desse modelo como sendo papel fundamental de um professor.
Como, por exemplo, a elaboração de planos de aula, ou mesmo de aulas gravadas (as tais cabeças falantes expondo conteúdos em vídeo), já que algumas das ferramentas de IAG (Inteligência Artificial Gerativa) permitem fazer a imagem em movimento do próprio professor aparecer em vídeo com sua voz expondo um conteúdo gerado automaticamente a partir de um pedido do tipo “crie um vídeo de 10 minutos de duração em que, tendo ao fundo tal imagem, o professor Fulano explique tal tema de biologia, com fotos e gráficos em tela ilustrando os principais pontos”.
Ou “crie uma lista de exercícios para serem resolvidos pelos alunos, entregue-a a eles, colha suas respostas e corrija com anotações explicando a cada aluno onde ele errou e mostrando a forma correta de resolver”.
Ou ainda “elabore uma prova com 20 questões de múltipla escolha abrangendo tais e tais tópicos de História do Brasil, aplique aos alunos e depois corrija, apresentando por fim uma planilha com as notas atingidadas por cada um”.
Ou mesmo “corrija esses trabalhos entregues pelos alunos aplicando tal rubrica de avaliação, segundo tais critérios, e me entregue uma planilha com as notas de cada um”.
Se você é um professor que só conhece a forma mais tradicional de ensinar e aprender segundo o modelo desenvolvido no bojo da primeira Revolução Industrial, essas possibilidades são aterrorizantes. Sob essa perspectiva isso significa o fim do trabalho docente, sua substituição por ferramentas de IAG, redução de oportunidades de trabalho e, no limite, desemprego, sem falar da normalização da desonestidade acadêmica. “É o fim da Educação”, diriam alguns.
E eu diria: “que bom!”, porque isso seria o fim de uma certa Educação, de uma determinada maneira de organizar o ensino e a aprendizagem que atendeu, e até mesmo bem, às necessidades educacionais da primeira e da segunda revolução industrial, mas que foi se tornando anacrônica e disfuncional à medida que o mundo foi mudando — e já nos encontramos em meio a uma quarta revolução industrial, caminhando para a quinta.
Porque aplicar esse remendo de pano novo tecnológico sobre o velho tecido pedagógico que vem se esgarçando desde o final do século passado não tem como levar a outra coisa que não a piora do que já é ruim.
Precisamos de um outro olhar.
Um olhar sob a perspectiva do “vinho novo em odres novos”, da inovação tecnológica servindo como oportunidade para a promoção de inovação educacional.
Aplicada a uma fórmula educacional tradicional esgotada e em crise, a inovação tecnológica só faz aprofundar e agravar seus desencontros e inconsistências em relação ao mundo atual e futuro.
E nessas horas de aprofundamento e agravamento da crise educacional pela adoção de tecnologia de ponta, não falta quem sugira que nos dediquemos a impedir que água desça morro abaixo ou fogo suba morro acima. Policiar e vigiar o uso de tecnologia por estudantes ou legislar contra a substituição de professores por ferramentas de IAG são algumas das propostas em discussão dentro desse esforço.
Mas isso nos desvia da tarefa a que desde muitos anos já deveríamos estar nos dedicando: a de mudar de modelo, abandonar a antiga formulação dos séculos XVIII e XIX e desenvolver novos modelos que atendam não apenas ao que o mundo de hoje exige, mas que também sejam capazes de promover a Educação que o futuro exige, uma Educação Transformadora, que não se conforme com o que o mundo vem se tornando, mas que nos ajude a direcionar e promover mudanças rumo ao mundo que desejamos, ao que o mundo pode vir a ser.
E, com efeito, desde algumas décadas para cá estamos assistindo à proliferação de iniciativas na direção dessa Educação Transformadora, que além de buscar transformar as vidas de estudantes e professores, e de procurar transformar sua realidade, o mundo a seu redor, também transforma as escolas, transforma a própria Educação, ao desenvolver e implementar novas formas de ensinar e aprender nas quais aulas expositivas e provas/trabalhos “valendo nota” perdem totalmente a razão de existir.
Por exemplo, a surpreendente e encantadora maneira como se estuda e se aprende na Escola da Ponte, escola portuguesa de ensino fundamental inspiradora de mais de uma centena de escolas brasileiras, que desde a segunda metade da década de 70 (portanto quase 50 anos!) desenvolve e aplica uma abordagem personalizada, sem turmas/séries, aulas ou provas, para que cada estudante assuma a condução da sua própria aprendizagem, organizando-se de forma autônoma para aprender, sob a orientação de professores que atuam como tutores, e em colaboração com outros estudantes em projetos que brotam de seus maiores interesses.
Ou ainda o surgimento em fins do século passado e multiplicação nestes últimos anos das chamadas Microescolas, escolas não-seriadas que atendem a uma quantidade menor de estudantes (abaixo de 100, frequentemente menos de 50) em ambientes onde a aula tradicional é impossível, as relações entre os alunos e entre estes e os professores se tornam mais próximas e salutares, e a inovação passa a ser a única forma de fazer acontecer a Educação.
Como também no amadurecimento do movimento da Aprendizagem Invertida (inicialmente chamada de “Sala de Aula Invertida”) que em pouco tempo evoluiu para a Flipped Mastery Learning (“Aprendizagem Invertida para o Domínio) e foi transformando em “SALAS DE ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM” as salas de centenas de milhares de professores ao redor do planeta, por delas retirarem as aulas expositivas e propiciarem um melhor aproveitamento do tempo em que professor e alunos estão juntos no mesmo espaço, favorecendo uma relação mais próxima e pessoal entre eles.
Aliás, especialmente nos EUA, mas também na Europa, cresce o movimento em torno da Aprendizagem para o Domínio (Mastery Learning, também conhecida como Competency-Based Education), baseada na inversão da relação tradicional entre tempo e performance da aprendizagem: em lugar de fixar o tempo em um certo número de horas/aula e depois procurar constatar através de provas o que foi que deu para cada estudante aprender dentro desse tempo fixo, ela fixa a performance dessa aprendizagem em 100% (ou o mais próximo disso), deixando variar o tempo. O importante, nessa abordagem, é que o estudante aprenda tudo o que precisa ou deseja. Em quanto tempo? Depende. Uns precisarão de mais tempo, outros precisarão de menos tempo. Mas o estudante somente passa para o próximo assunto depois que tiver dominado o que está estudando. Ele estuda até aprender — não apenas até o momento em que um professor diz que é hora de seguir para o próximo ponto do programa.
São iniciativas que estão se espalhando nesse momento pelo mundo, inclusive aqui no Brasil. Mas que ainda são pouco conhecidas, desconhecidas mesmo da maior parte dos educadores e da maioria da população.
Deveríamos conhecer mais a respeito delas. Porque estamos num momento privilegiado em que mais uma vez um avanço tecnológico nos obriga a repensar o que estamos fazendo em Educação. Precisamos estar mais bem informados acerca dessas outras possibilidades, dessas novas formas de ensinar e aprender.
Do contrário estaremos prolongando desnecessariamente o sofrimento de alunos e professores ainda presos a um modelo de ensino que já deu o que tinha de dar no passado e não tem mais o que fazer nesse nosso presente — menos ainda no futuro.
E então? Vamos ficar nessa de aplicar tecnologia de ponta apenas para fazer mais do mesmo?
Diga para mim o que você pensa sobre isso. Por favor fique à vontade para me procurar no meu Whatsapp para a gente conversar mais a esse respeito…
Até daqui a pouco…